domingo, 9 de junho de 2013

PEC 37 e O PODER DE INVESTIGAR - Por Rafael F. Vianna


Muitos colegas delegados de polícia e amigos promotores e advogados vem me perguntando o que acho da PEC 37 e do poder de investigação do Ministério Público. Não gosto de discutir assuntos em que imperam as paixões corporativas e os interesses de classes, pois pouco se constrói neste tipo de discussão. Ao contrário, criam-se mágoas e mal entendidos que perduram, às vezes, por décadas.

Acredito, aí sim, em um diálogo em que visões de mundo são apresentadas de forma aberta, sem dogmas ou verdades acabadas, em que ambos os lados estão dispostos a reconhecer suas falhas e limitações. Observe-se que não prego qualquer tipo de neutralidade axiológica ou desinteresse político - tomando o conceito de política como organização do poder e escolha dos nossos rumos como sociedade; e não como política-partidário-classista, entenda-se bem – mas apresentarei os fundamentos das minhas visões de mundo, uma vez que acredito em um sistema maior do que meu simples interesse salarial, de classe ou de poder momentâneo enquanto estiver ocupando o cargo de Delegado de Polícia. Temos que tentar pensar como cidadãos, como se não estivéssemos em nossos cargos, o que esperamos para nossos filhos quando não estivermos mais aqui.

E para iniciar a apresentação de meu posicionamento, tenho que esclarecer, para aqueles que não me conhecem ou nunca leram nada do que escrevo, que sou um questionador inveterado, cheio de inquietações, um insatisfeito com tudo que há de errado com meu espírito e no mundo, um livre-pensador cheio de dúvidas, mas com posicionamentos fortes quando acredito em algo, mais para liberal do que para retrógrado e mais progressista do que tradicionalista, pragmático e idealista na mesma proporção.

Feitas as apresentações e partindo de uma reflexão demorada, um pouco de leitura e algumas discussões longas com estudiosos do tema, abordarei alguns questionamentos que envolvem a PEC 37 e o poder de investigação.

O primeiro aspecto dessa discussão toda em torno da PEC 37 é que ela envolve paixões corporativas e que isso é inacreditavelmente prejudicial para qualquer sociedade organizada. Ela ganhou um contorno classista que atualmente é utilizado como moeda de troca entre políticos, perdendo-se a essência da discussão.

Quando discutimos o poder de investigar, assim como quando discutimos a unificação das polícias, discutimos o que esperamos da nossa vida em sociedade e das nossas liberdades.

Não existe poder maior do que o poder de investigar. É a polícia civil que chega ao local do crime, reconstrói os fatos, interroga suspeitos, indaga testemunhas. Investigar é ter o poder de conhecer o mundo real, como as coisas acontecem de fato, como serão transportadas para o papel, como chegará ao conhecimento de todos aqueles que não podem viver a crueldade do mundo das ruas. Nenhum crime é exatamente da forma como chega aos tribunais, nenhuma história é exatamente - em todos os seus detalhes, razões e motivações – como a dinâmica que aparece no processo. Investigar é construir vidas, destruí-las, reconstruí-las, salvá-las.

Quem investiga um crime escreve a história e não há poder maior do que esse. Quando falam em unificar as polícias civil e militar, esquecem que se criará uma força incontrolável, que não terá concorrentes nas ruas, que poderá montar as vidas das pessoas da forma que bem entender. A fiscalização mútua e concorrente que existe nas ruas entre as diversas forças policiais é que impede as injustiças e os abusos.

É evidente que existem pessoas boas que investigam, pessoas que não cometem abusos, que agem estritamente dentro da legalidade, que são exemplos de integridade. Mas não podemos pensar o sistema a partir dessas pessoas, pois a função de investigar e o poder que vem com isso transforma o espírito de qualquer ser humano. O poder de fato da investigação traz memórias atávicas, desperta instintos primitivos, nos transforma em predadores-caçadores correndo atrás da presa. É por isso que a polícia é tão fascinante e tão perigosa. É por isso que muitos policiais se perdem no caminho, é por isso que precisamos cuidar muito bem da formação e da carreira de nossos policiais.

Já escrevi artigos sobre a essência da polícia (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/02/a-essencia-da-policia.html, a razão de existir do direito penal (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/02/o-direito-penal-para-nos-salvar.html) e o que você precisa para ser policial (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/03/para-ser-policial.html). Não posso reproduzir esses artigos na íntegra aqui, mas recomendo que todos os leiam antes de nos aprofundarmos no assunto ora discutido. O que se retira do que foi dito até agora é que a polícia, entendida como “poder de investigar”, traz seus perigos intrínsecos e que esses perigos não vem com os policiais, mas com qualquer pessoa que ocupe esse papel de inquisidor/investigador e tenha o poder dele decorrente.

O Ministério Público, quando passar a investigar como a polícia, terá seus desgastes, enfrentará os problemas das ruas e do submundo, conhecerá seus membros “abusadores” e que se perderão. Não há espírito humano que não sofra com as tentações do poder, do domínio de contar a história, de montar vidas, de decidir destinos. Poucos têm coragem de falar sobre isso, mas o não falar, o não questionar, o não refletir sobre como minimizar esses efeitos condenam nossos jovens policiais a uma vida desgraçada, sofrida, cheia de problemas de convivência. Muitos policiais, muitos mesmo, retiram a própria vida porque não conseguem conviver com as tragédias que presenciam, não conseguem mais viver com suas famílias, não conseguem entender onde perderam sua personalidade e o que eram antes de entrarem para a polícia.

Pensar o sistema de persecução penal significa pensar o que queremos para nossas liberdades, para nossa segurança, para nossa sociedade. Não tenho dúvidas de que a segurança pública seria mais facilmente administrada em uma ditadura, não tenho dúvidas que descobriríamos e prenderíamos mais autores de crimes se a tortura fosse autorizada, não tenho dúvidas que nossa polícia seria mais eficiente se não existissem as regras do direito penal e do processo penal. A polícia funciona melhor em uma ditadura, a investigação é mais eficiente em um estado totalitarista, a sensação de segurança da população é maior quando um órgão de investigação é forte, onipresente e onipotente.

E aí é que existe uma escolha social, que precisa ser escancarada quando discutimos quem poderá investigar e como poderá investigar, quando pensamos em unir as polícias e quando pensamos em quem irá fiscalizá-la. Pagamos um preço para vivermos em uma sociedade livre, em uma dita democracia (ainda que duvide que ela exista de fato), em um Estado de Direito. E esse preço talvez seja que alguns inocentes serão mortos e que alguns crimes ficarão sem solução quando tivermos que escolher entre torturar ou não descobrir. Talvez esse preço seja a ineficiência e a demora quando tivermos que escolher entre o controle judicial das interceptações telefônicas, das prisões e das investigações; ou a total liberdade de atuação para quem investiga. Não sei ao certo qual eu escolheria se meus filhos estivessem como reféns, mas é para conter as paixões e instintos humanos em épocas de tormentas que o Direito é pensado em épocas de razão.

O Ministério Público foi criado para ser nossa razão imparcial (o quanto isso puder existir), para acusar, para controlar, para fiscalizar tudo que pode não corresponder ao nosso pacto social, às nossas escolhas de vida em grupo, ao que pensamos ideal quando criamos nosso Estado-Nação. A aprovação da PEC 37 não mudará nada na função do Ministério Público, no que pensamos como função para ele, na sua imensa importância para nos manter como sociedade organizada e civilizada.

Discutir a PEC 37 nesses termos é inconsequente e uma afronta a tudo que o Ministério Público é e ainda pode ser. Fazer com que ele passe a viver as paixões da investigação, suas dificuldades, seus desgastes, seus submundos indizíveis, é criar uma nova polícia, que se transforma pela sua função, independente de quem esteja ali.

A polícia precisa de controle, de fiscalização de suas investigações, de análise imparcial e distante do que produziu. Nós como cidadãos precisamos que alguém faça isso por nossas liberdades, pela nossa segurança. Escolhemos assim quando organizamos nossa vida em sociedade. Eu desejo que exista alguém para desempenhar esse papel quando eu for o investigado, quando a polícia me abordar na rua e puder mudar a minha vida. Quem investiga poderia tudo, caso não existissem advogados, juízes e promotores que realizam o controle da legalidade de tudo que é produzido.

Se o Ministério Público e o Judiciário começassem a investigar, quem nos garantiria a legalidade e não apenas o argumento final da força de fato? Buscar investigar é buscar um poder atraente, mas perigoso; é esquecer que ninguém está livre das tentações, é esquecer que um dia podemos ser o investigado, que aqueles que amamos não ocupam o mesmo cargo do que nós, é esquecer que pensar nossa sociedade não é uma questão classista.

Além disso, a especialização das funções melhora a qualidade do serviço, possibilita o aperfeiçoamento das atividades, estabelece os limites, delimita os controles e freios. Investigar não é somente achar ou ter boa vontade. Existem técnicas, estudos, cursos, preparação. Ainda assim, a polícia falha, sofre, se desgasta, está eternamente buscando a intangível verdade.

Realmente não consigo entender o que se discute com essa PEC 37, pois o Ministério Público continuaria cumprindo a sua missão, com as mesmas ferramentas que a Constituição dispôs para ele, com o mesmo poder de realizar o controle externo das polícias e fiscalizar o cumprimento da lei. É evidente que para fazer isso ele necessita ouvir pessoas, coletar elementos de convicção, requisitar diligências. Mas isso é muito diferente de investigação criminal, de trabalho de polícia, de interceptação telefônica, de busca e apreensão, de buscar a “verdade” e encontrar o autor do crime: isto é investigação policial.

Certo é que enquanto se faz todo esse teatro, essa ilusão de discussões apaixonadas e convictas, os policiais continuam morrendo e esperando que a lei também valha para eles, os promotores continuam lutando para desafogar seus gabinetes com problemas insolúveis e a população continua esperando que uma mudança legislativa acabe com todos os seus problemas e suas angústias. Vamos longe assim…
Por Rafael F. Vianna

7 comentários:

  1. Sem dúvida, o texto mais sensato que li até agora sobre o tema. Parabéns!

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  2. Como mãe de uma vítima sinto muito a falta de estrutura nas instituições. É difícil seguir sem respostas e ainda saber que 33 meses depois os assassinos continuam livres. Gostaria mesmo é que a polícia militar tivesse feito a parte dela, isolado o local do crime, e que a polícia civil tivesse chegado em seguida e colhido o máximo de pistas... talvez o criminosos tivessem sido presos em poucas horas e não tivessem tido tanto tempo para se articular. Mas faltam pessoas, recursos, interesse político... e o pior é saber que o cenário continua o mesmo.

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  3. Como profissional da área sinto as mesmas dificuldades que foram citadas acima, como a falta de estrutura e o desinteresse político. Mas digo que guardadas as devidas proporções com relação aos sentimentos decorrentes da perda, não existe situação pior para um policial comprometido do que a não resolução de um crime. Esse fato causa na esfera pessoal uma série de alterações psicológicas, que vão dá falta de sono até fatos muito mais graves. Então, aproveitando a onda que se espalha pelo país, porque não começamos a fazer manifestações em prol daquilo que é básico e talvez mais valioso para o cidadão. Como por exemplo: segurança pública de qualidade; investimentos na investigação; justiça criminal célere etc.

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  4. Excelente Dr. Rafael.

    Abs.

    Leleco

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  5. Rafael, parabéns pelo texto! Concordo com muito do que você escreveu, especialmente no que concerne às falhas, excessos e abusos que existem em todas as instituições (inclusive, claro, no Ministério Público, instituição da qual faço parte). Realmente parece que querem colocar o Ministério Público contra a Polícia, quando na verdade trabalhamos em conjunto. Faria apenas quatro colocações: 1) as investigações realizadas pelo MP são suplementares àquelas realizadas pela Polícia(não queremos e nem temos condições de investigar todos os crimes) e acontecem dependendo das circunstâncias do caso concreto (crimes praticados por políticos com gde influência na Polícia, pelos próprios policiais civis e militares, por grandes empresários com muita influência nos políticos e/ou na Polícia, etc); 2)caso a PEC 37 seja aprovada, pra mim, isso iria sim interferir na nossa missão... o que fazer/dizer àqueles que chegam nas Promotorias (principalmente no interior do Estado)relatando abusos/crimes de policiais, prefeitos e vereados? Não consigo ver uma solução prática para esses casos... a Corregedoria da Polícia conseguiria atender esses casos do interior? como os casos seriam relatados? via telefone? internet? por escrito?; 3) por mais que o poder de investigar seja "perigoso", como você bem mencionou, colocá-lo nas mãos de apenas uma instituição não seria mais perigoso ainda? esse monopólio traria benefícios para nossa democracia/sociedade; 4) às vezes parece que o MP é visto como um órgão que quer a acusação a qualquer custo, e não um órgão que arquiva inquérito policial quando não tem provas, denuncia quanto tem provas mínimas, pede a acusação quando tem provas produzidas mediante contraditório e a absolvição quando essas provas não existem (pelo menos é assim que eu faço)... se não podemos investigar porque somos "parciais/órgão de acusação" então a nossa atuação nos arquivamentos de inquéritos também não seria "parcial" e, portanto, "inválida"? ou será que só somos "parciais" quando denunciamos? Gostaria muito de ouvir mais de você sobre o tema, pessoalmente, claro! Abraços, Andressa Chiamulera

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  6. Oi Andressa,
    vou ter que responder suas colocações em uma nova postagem.
    Mas já antecipo alguns posicionamentos: Polícia e MP trabalhando em parceria é muito perigoso. Não sou um dos defensores desse posicionamento. MP deve analisar de forma imparcial e distante a investigação feita pela polícia. Pense no mal que um delegado e um promotor mal intencionados podem fazer.
    1) Investigação criminal seletiva é coisa de estado totalitarista, ditadura. Escolher quem investiga de acordo com critérios pessoais, políticos e seletivos? E se o promotor não for uma boa pessoa como nós?
    2)O papel do MP, como falei no texto, envolve atos claros para cumprir sua missão. Oitiva de pessoas, requisição de documentos... Isso é diferente de investigação criminal. A investigação da ação civil pública possibilita todos os atos necessários para a proteção do patrimônio pública. A solução prática é mais longa e escrevo depois ou depois te falo.
    3) O poder de investigar é perigoso e não é "belo", portanto quanto mais restrito melhor em um Estado Livre. A instituição que investiga CRIMINALMENTE precisa de controle e fiscalização. Não estamos falando de outras formas de "investigação", que permanecem iguais.
    4) O MP só não quer a acusação a qq custo pq ele não investiga e consegue analisar a investigação de forma imparcial. Se ele denuncia alguém e depois pede o arquivamento, ele errou na denúncia. Aquela história do na dúvida denúncia, pois prevalece o in dubio pro societate é balela. Um desrespeito ao direito do cidadão acusado. Não devia ter denunciado e sim requisitado mais investigações.
    Ia só escrever algumas coisas e escrevi um monte de coisas. Acho melhor discutirmos pessoalmente mesmo.
    Abraços,

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  7. Mais uma coisa que esqueci de falar:
    grandes empresários e grandes políticos tem influência em promotores também. Pelo menos tomando o comum, assim como é quando se fala que tem influência em policiais. Em mim não tem.

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